Tratamos a mitologia como entretenimento ou como relíquia de um passado ingênuo. Colecionamos histórias de deuses e heróis como quem coleciona selos postais — belos, mas sem função prática no mundo moderno. No entanto, e se estivermos completamente errados? E se os mitos não forem histórias sobre o que aconteceu, mas sim linguagens para descrever o que sempre acontece?
Um mito não é um conto — é um sistema de coordenadas para mapear territórios da experiência que resistem à descrição literal. Os gregos não “acreditavam” que Zeus lançava raios — eles estavam descrevendo a experiência do poder absoluto, da autoridade que vem de cima e nos atinge com força irresistível. Zeus não era um personagem; era um verbo cósmico disfarçado de substantivo.
Quando dizemos que alguém está “complexado com a figura paterna”, estamos usando uma linguagem técnica da psicologia. Quando os gregos contavam sobre o conflito entre Zeus e seus filhos, estavam descrevendo o mesmo fenômeno em uma linguagem diferente — mais rica, mais multidimensional, mais capaz de capturar a complexidade emocional do processo.
A linguagem técnica explica; a linguagem mítica evoca. A primeira nos dá ferramentas para analisar; a segunda, para experienciar. E alguns territórios da psique só são acessíveis através da experiência.
Pense no mito de Perséfone — a jovem raptada por Hades para o submundo, tornando-se assim rainha dos mortos. Isso não é uma história sobre sequestro; é um mapa para entender a transformação através da dor. A adolescente inocente que precisa descer às trevas para emergir como uma mulher completa. Quantas de nossas “depressões” não são versões pessoais dessa jornada obrigatória?
Os mitos funcionam como softwares psíquicos — programas que contêm instruções para processar experiências universais. Eles não nos dizem o que pensar; nos ensinam como pensar sobre certas categorias de experiência. O mito de Édipo não é sobre sexo com a mãe — é sobre o paradoxo de que podemos nos tornar o que mais tememos através das mesmas ações que tomamos para evitar esse destino.
Aqui está o insight radical: todos vivemos mitos, conscientemente ou não. A pessoa que sacrifica tudo pela carreira está vivendo uma versão do mito de Hércules — a busca por reconhecimento através de trabalhos hercúleos. Quem busca desesperadamente o amor perfeito está reencenando o mito de Eros e Psiquê — a jornada através de provas para alcançar a união divina.
A diferença é que, quando não conhecemos os mitos que estamos vivendo, tornamo-nos escritores-fantasmas de roteiros que não compreendemos. Quando os reconhecemos, tornamo-nos coautores conscientes de nossas próprias jornadas.
A mitologia não é folclore — é a ciência mais antiga da alma. E talvez, em nossa busca por linguagens mais precisas para a experiência humana, precisemos redescobrir que alguns códigos já foram escritos há milênios — e continuam perfeitamente funcionais.
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